terça-feira, agosto 30, 2005

Siriris

Os siriris dançam lá fora traçando elipses ao redor da lâmpada que ilumina parte do quintal. E eu que não sinto exatamente fascínio pelo frio fico feliz pelo dia quente que passou. Vou contar uma coisa, é que eu adoro verão. Sim eu adoro, mesmo sabendo que o inverno só acaba daqui a uns vinte e poucos dias, mesmo o dia tendo esse ar de artificialidade, mesmo estando tão abafado que eu mal consiga ouvir meus pensamentos tamanha enxaqueca que esse calor me trouxe. Os dias andam bons, repletos de conversas agradáveis com grandes amigos, o que tem me deixado muito feliz. Coisas de cancerianos...

segunda-feira, agosto 29, 2005

Às mais belas flores

Algumas coisas são mais surpreendentes do que deveriam. É estranho não reconhecer a beleza rara de uma flor. A delicadeza plácida e até um pouco vulgar das pétalas, o modo como elas se atam às sépalas, seus pistilos longos e delineados, o sabor intenso do néctar, o aroma exuberante, as cores vibrantes... Nenhuma flor é igual a outra. Não, cada botão é único em sua pequena existência e a cada florada novos botões abundam sem nunca se repetir.

Eu costumava comprar flores... Grandes gérberas alaranjadas e, às vezes, botões de rosas com suas aveludadas pétalas vermelhas. Foi a um longo tempo, se foi. Eu adorava a situação como um todo de ir até uma banca de flores e escolher lentamente o botão perfeito. De sentir a umidade vinda dos vasos e o cheiro das flores no ar, de ver o florista trabalhar acertando o comprimento do caule e limpando-o dos acúleos. De andar pela rua levando o botão solto e fresco e do olhar poético que as pessoas lançavam sobre mim. E quando chegava ao meu destino eu adorava assistir aos risos florescerem, encantadores, sinceros, profundos, inesquecíveis, únicos.

domingo, agosto 21, 2005

Vômito

Então eu tento fechar a minha cabeça para que as idéias não escapem, não fujam ou se misturem com as outras coisas ao meu redor. Como se todas as coisas no meu quarto fossem pintadas em tinta a óleo e a qualquer momento que eu toque ou olhe para qualquer coisa isso possa se misturar as minhas idéias. Não quero, ou melhor, não posso, não agora pelo menos. Tenho algo importante a pensar, a escrever. Digito olhando para o teclado para não ver absolutamente nada ao meu redor que possa me desconcentrar.
Tudo começou ontem à noite. Fui a uma festa de noivado muito legal de uma amiga minha da faculdade, que me arrependo de não ter conhecido antes, assim como a todas as pessoas com quem atualmente eu falo por lá. É como se depois de todos esses anos o curso tivesse separado o joio do trigo e agora eu possa encontrar pessoas que são como eu. Isso é adorável, embora não queira dizer necessariamente algo além disso. São pessoas como eu sou, nem melhores, nem piores do que as outras pessoas. Na vida carecemos ter pessoas diferentes assim como carecemos ter pessoas minimamente parecidas conosco. Mas às vezes o manto da igualdade esconde diferenças estarrecedoras. Enfim, o meu leitor que me perdoe o raciocínio tortuoso, é que quando passamos por um período de estiagem criativa, nós escritores, temos acessos nos quais vomitamos todas as idéias que nos vêm à mente, tudo o que pensamos, tudo o que sentimos; acessos que queremos, desejamos, precisamos grafar de qualquer modo. Para mim, hoje é um desses dias.
Como eu ia dizendo, ontem fui a essa festa em uma tradicional balada rock n’ roll paulistana. E sob a sensação hospitaleira da fraternidade não consegui evitar me sentir um pouco deslocado por estar entre várias pessoas que conheço a pouco tempo. O que mais uma vez me obriga a interromper para pedir desculpas, pois o fato de serem novos amigos não os diminui de modo algum. A admiração mútua, o tratamento afável que se estabelece entre todos nós é de todo respeitoso e sincero, o que me comove bastante a despeito do fel. O fel é apenas um desconforto fútil que sinto, semelhante a começar um livro pelo seu último capítulo. Como assistir ao final de uma peça identificando-se a um Hamlet cuja paixão se desconhece. É o grito agonizante de alguma sinapse esquizóide em meu cérebro.
Não sei se vocês compreendem o que tento falar, entendo que as sucessivas interrupções narrativas a que eu vos submeto evidênciam o tão pernicioso assunto. Eu falo sobre o medo. Maldito medo que me persegue noites a fio, sombra longilínea que se estende a partir dos meus pés. Queria entender quem me infundiu todo esse medo. Quem... Eu mesmo talvez, tendo me submetido a meia dúzia de relações espúrias que me fizeram apenas mal. Agora eu medro toda vez que recebo um olhar afetuoso, esperando um golpe de chave inglesa por cada sorriso. Não compreendo a mim mesmo. Tenho, às vezes alguns delírios de entendimento, pálidas idéias que não conseguem refletir a realidade. Realidade... E o que é a realidade senão um status mórbido criado por cada um de nós para convenientemente simular o meio e justificar aos nossos atos, a nós e aos nossos imensos umbigos.

terça-feira, agosto 16, 2005

Tum-tum

Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Os latidos dos cães ecoam noite adentro pela vizinhança.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Sem sono... de novo. Fico deitado observando as fotos antigas no mural do outro lado do quarto.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Faz tempo que não o organizo ou a qualquer outra coisa dentro do meu quarto. É como se ele houvesse parado no tempo há um ano, um ano e meio.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Viro para o outro lado e olho a parede. O sono não vem.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Fico olhando a textura da parede, não consigo dormir. Meu coração bate muito alto.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
A minha mente passa por um milhão de coisas sem se fixar em nenhuma, eu fico ouvindo o meu coração bater e bater e bater e me pergunto o que está errado.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Um pernilongo tenta se aproveitar da minha distração, eu logo ligo o veneno no quarto.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Fico com sede, levanto, vou até a cozinha, tomo um copo d’água e na volta vejo o relógio. Faz quase uma hora desde que me deitei e até agora nada, nem mesmo uma boa idéia para escrever. Acho que o tempo que eu tenho passado sozinho está começando a me afetar. Olho admirado para as últimas linhas e me surpreendo como um simples copo d’água faz as linhas correrem mais depressa.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.
Um gato de rua começa a miar no quintal e o meu cachorro acorda, os latidos deixam de ser apenas ecos; o pernilongo continua vivo em algum lugar.
Sinto que não consigo ter nas pessoas a mesma confiança de antes, não sei por que. Muitas coisas, a falta de escrúpulos da grande maioria que acha que você não nota, pessoas de quem gosto desaparecendo subitamente, opiniões duvidosas.
Silêncio.
Os carros pararam de passar, o gato se foi, meu cão voltou a dormir e os ecos quase cessaram. O meu coração? Parece estar batendo mais rápido e quieto, saudades de alguém que partiu há muito tempo.
As pontas dos meus dedos adormeceram, faltam seis minutos para as 3:00 e parece que a noite vai ser realmente longa.

terça-feira, agosto 09, 2005

Explosão criativa

Os canos secos desde muito tempo não viam água outra senão a da extensa umidade da parede. Um dia foram canos de sistema anti-incêndio outro dia cultivo de ferrugem. O teto baixo e o ar viciado não tornavam o lugar agradável, um lugar perdido, esquecido pelo tempo entre paredes de uma megalópole, abaixo de um prédio qualquer em uma rua qualquer em lugar nenhum. Poças d’água cobriam o chão de concreto criando um espelho perfeito do teto e das paredes cheias de brechas, refletindo um pouco da luz do céu e de uma grande nuvem branca perdida pelo lugar. Mais acima, o edifício abandonado tecia a sua viagem através das décadas, um bloco de cimento com paredes podres, tinta descamando, toneladas de umidade e mofo incrustado na cidade. Ele poderia estar absolutamente sozinho por todo esse tempo, mas ainda assim estava vivo. Comunidades de insetos, fungos, uma samambaia que morava em um buraco nos tijolos, onde um dia esteve fixada a calha, e agora, mais recentemente um homem que acabara de entrar. Ele fechou a porta atrás de si deixando a rua presa do lado de fora e começou a procurar o registro. Verificou se tudo estava em ordem. Removeu o pastoso calhamaço de papel formado pela correspondência velha enfiada por baixo da porta e começou a subir a escada até o andar de cima. Subiu, subiu, subiu os degraus gastos por centenas de pés que ali passaram parando apenas por um instante quando a nuvem cruzou com o sol a luz diminuiu por um instante. Voltou a subir pisando em duas traças que dialogavam amistosamente na curva de outra escada que contornava o prédio por dentro, atravessou uma cozinha vazia e deu com a porta que levava para a varanda exterior inchada pela ação da chuva. Forçou-a e abriu com alguma dificuldade. No exterior havia ainda mais uma escada íngreme que escalava o topo da construção, levando até uma sala extensa e desabitada. O tempo já havia virado, começava a garoar e as gotículas d’água dançavam pelo ar. Parou à porta já do lado de dentro da sala e observou o mundaréu de telhados e antenas de televisores. Ouviu o barulho dos carros que ainda conseguia chegar até ali, embora um pouco abafado, e fechou a porta como se houvesse uma nevasca do lado de fora. Na sala o chão de cimento liso adquiria tons róseos da luz de um filtro vermelho envelhecido preso à janela. Caminhou pela sala funcionalmente amorfa e tentou usar uma pia perdida por ali. Houve primeiro um som agudo e estertorante vindo da torneira, um pouco de vento, um silêncio e a reverberação de dezenas de canos de chumbo balançando, vibrando, agonizando e gritando com um silvo longo do vazio de anos. Era como ser atingido por uma extenuante dor de cabeça em um momento de gozo. E lá embaixo já vazando água pelas juntas o cano arrebentara...