terça-feira, março 16, 2010

O Tigre da Tasmânia

Dizem que recordar é passar novamente pelo coração, mas a memória tem algo de volátil e de traiçoeira, tal qual a víbora que desvanece tão repentinamente quanto surge antes do bote. Pode parecer uma afirmação falsa, mas é fato que não sou capaz de me recordar da minha primeira experiência artística significativa. Lembro de muitas coisas, das cores nas latas de tinta, do silêncio e da escuridão do laboratório fotográfico, das mesas de desenho e de pessoas que passaram por elas; mas sobre tudo me lembro da mistura peculiar de cheiros que iam da serragem na carpintaria aos periódicos sobre as mesas do escritório passando pelo cheiro das emulsões, thiner, poeira, películas e das pessoas que davam vida à fábrica. Os dias eram longos, repletos de contradições e curiosidades. De certo não era arte, mas ela estava impregnada por lá em todos os cantos e espaços, entrava pelos poros e morria na boca. E quando terminava deixava um sabor estranho de algo que é o que não é e não é o que é.
Devaneio, uma garota ao telefone rabisca dezenas de caixas num pedaço de papel, outra quebra uma folha em centenas de triângulos cuidadosamente coloridos. No museu de arte, um garoto brinca com uma estátua da maneira que garotos brincam para constranger aos adultos. Em um quarto mal iluminado uma gaveta transborda lápis, réguas, tintas e decalques. Um prédio se sustenta no ar por quatro pernas que ainda não eram vermelhas. Eu não sei como foi porque eu não estava lá, era outro, lá no principio, onde a linguagem se insinuou antes da mensagem. Carregada de um hálito embriagante, inexorável, sedutor, proibido, implacável.