terça-feira, junho 05, 2012

Vagas

O vento e a chuva castigam a janela aborrecendo as pessoas, mas não a mim. Chegaram ontem, de sobressalto, pulsando vida que recebo com a alegria velada de quem vê no outro o reflexo de uma paisagem muito mais interna. Era como aguardar um amigo que está a anos-luz de distância. E que quando chega não fala, ficamos apenas calados, sentados na varanda e isso nos basta. Eu sonhei que era assim que eu encontrava um casal de velhos amigos e contava a eles um sonho que tive (com eles) sem evitar falar em versos com éfes e éles . Era natural, sem esforço, ao mesmo tempo em que  eu era um garoto na estrada querendo aprender sobre garotas e uma rapaz sendo cortejado num bar. E o bar era uma piscina, que era um lago, que pendia sobre o garoto na estrada e arrebentava mar. Eu deixava os meus amigos em seu ninho-castelo de portas abertas e paredes grossas cheias de espinhos. Eu seguia a estrada de pé sobre uma parelha de cavalos. Eu abraçava a garota pela cintura e me despedia como quem sabe que parte por conta de alguma inadequabilidade, que me carrega sobre as vagas para algum outro lugar. Então acordo à deriva, feliz por ter trocado o toque do meu alarme, mesmo que esse estivesse alto demais. O outro me deprimia. E me inclino para fotografar a janela do ônibus, toda molhada, sem me importar para onde este me leva ou quanto tempo levará para chegar.

domingo, março 25, 2012

Manhã Branca

Acordo para uma manhã branca. Os raios frios entram pelas frestas que o tempo abriu na janela. O teto se inclina em minha direção curvado pelo peso dos cupins e o tempo breve prenuncia mudanças. Está cedo de verdade, não aquele o cedo de todos os dias e todas as horas, o cedo do incerto, está cedo de verdade. O sono deixa a cama com pressa e vilania e eu já nem insisto que ele fique, mas levo alguns minutos para me dar conta de mim mesmo e da partida de um amigo.

Ele não foi embora ontem, já havia partido há uns cinco anos, ou talvez eu que partira então. Ainda assim é amargo acordar em um mundo arbitrário. Talvez eu nunca mais o visse mesmo que ele continuasse vivo, mas agora... Agora tudo o que faço é me lembrar dos ritos fúnebres e dos rostos de inúmeros desconhecidos, enquanto percebo o quanto já me esqueci dos rostos que nós conhecíamos e que não estavam lá. Como se houvesse calor num abraço hipócrita de quem teme a ave de rapina. Como se nossa carne não estivesse igualmente rota e carcomida porque ainda respiramos. E me assustei. Não por medo de sua sombra ou pelo toque de suas penas, nem pelo vazio deixado por quem nunca esteve ao meu lado, mas por perceber o quanto eu também já esqueci de mim mesmo.

quarta-feira, janeiro 11, 2012

Pulso

A aurora chega desconexa e distante. Sinapses se estabelecem, quebram e tornam a se estabelecer, calam a ressaca ruidosa que se abate sobre a praia. Não somos novos e não somos velhos, estamos apenas vivos há tempo o bastante para entender o que fazemos. As poucas nuvens no céu se esquivam de golpes aleatórios de vento como eu me esquivo das milhares de palavras que tenho apertadas contra o peito. E quem foi que disse que palavras tem de ser ditas? Enquanto viajamos na mesma direção, por aquele pequeno instante, palavras não importam. Guardo para mim meus próprios demônios que não tardam a cobrar o que lhes é devido. Finjo para mim mesmo que não sei do que estou falando e, por um breve instante entre dois pulsos, quase consigo me enganar. Quase.