sábado, agosto 03, 2013

Sinistro

Você me disse que ficaria por perto, lembro-me bem. Não foram as palavras que você não disse, mas seu olhar misterioso, aterrador, profundo, seu sorriso belo e sinistro. O dia é belo, quente, claro e de cores profundas. As árvores despem-se deixando a pele nua e as folhas caídas pelas calçadas. O telefone toca logo cedo e sua campainha arrasta consigo para longe o humor das cores. Silêncio. O azul do céu, antes profundo e alegre, agora possuí um aspecto patético, baço, ainda que não houvesse mudado em nada desde o instante anterior. Outro pecador se vai para aqueles que acreditam em pecado, mas para mim... para mim segue o silêncio. E penso nisso tudo enquanto ando e o sol arde, enquanto espero na estação rabiscando quieto o meu pesar sobre as páginas do caderno. Pesando o tempo enquanto o trem singra a planície entre os galpões e prédios ao deixar para trás as casas bucólicas. O amigo vai ficando distante enquanto o trem se afasta da estação. E quando menos espero você está aqui outra vez. Ou talvez eu seja apenas um cego incapaz de ver que você nunca saiu do meu lado.

segunda-feira, março 25, 2013

Manhã de Outono

Algumas cores voltaram e me fazem quase não triste. Alegre, aproveito a solidão de me encontrar à só, tão rara e oportuna que me faz respirar aliviado frente ao contraste da corriqueira e tortuosa solidão acompanhada. É outono, minha estação preferida, cujas cores mudam em segundos e revelam centenas de matizes e nuances nas peles dos velhos, na cesta de cebolas e na xícara de café. Enquanto isso continuo a narrar trechos desconexos de sabe-se lá o que. Seria isso a vida? Tento me desvincilhar de minhas tentativas frustradas de escapar ao esquecimento ou ao abandono. É verdade que freqüentemente sou eu próprio a fonte do meu ostracismo. Meus amigos me esquecem ou se revoltam e, por mais sensível que eu seja, nunca fui capaz de não me perder entre tudo o que vejo e o que deixo de ver. Sou muitas vezes incapaz de distinguir nas pessoas a afeição real e a necessidade do outro para a autoafirmação egocêntrica de si mesmo. Chame-me de hipócrita, crucifique-me se quiser. Sinto falta de poucas pessoas, mas sinto essa falta como sentiria a falta do ar, do sangue ou de meus ossos. E não me envergonho mais em dizer que não raro me envergonho de ser... Mas eu falava das cores do outono que se revelaram paranóicas pela nesga de sol entre as nuvens agora fechadas.

domingo, janeiro 13, 2013

O Vestido

Hoje a morte veio me ver em meus sonhos. Deitada em uma grande cuba de inox parcialmente cheia de água, vestia a carcaça de uma mulher adulta, quase uma senhora, cujas partes centrais de seus membros haviam sido libertas de todas as carnes. Suas pernas sem a carne das coxas e seus antebraços sem a carne dos braços moviam-se eloquentes, pendurados pelos ossos ainda cobertos de sangue, como longas luvas e botas de carne. Alguma pele da coxa direita ainda estava lá presa e boiava como um chiffon de seda na água de sua cama metálica, um detalhe sofisticadamente maquiavélico. Seus cabelos eram belos, longos, castanhos e encaracolados. Seus olhos, profundos e agudos como pontas de facas. Olhava para dentro de mim, através do recôndito de meus olhos, curiosa e animada, olhava dentro de mim e contava a história dessa senhora. Sorria e tentava ser de todo agradável, mesmo sabendo que não o era, talvez pelo simples fato que seja essa a sua natureza ou porque queria que eu que eu não tivesse duvidas sobre quem ela era. Divertia-se com isso. Ela conhece meu cansaço das injustiças do mundo. Ela sabe que penso nela. E acordo sozinho, enjoado, ofegante, suando frio. Meus olhos banhados pela luz fria da noite piscam secos e confusos e, a cada encontro de pálpebras, lá está ela a sorrir novamente. Queria gritar, mas não tenho voz e chorar mesmo sem lágrimas, queria me libertar da crueldade de seu sorriso que me abandona desperto para o mesmo mundo de sempre.

terça-feira, janeiro 01, 2013

Labirinto


Essa noite eu tive um sonho. Sonhei que tentava escrever e a tinta de todas as canetas falhava. As letras, despedaçadas, irreconhecíveis, se atiravam pelo papel cobrindo toda sua superfície diminuída pelo tamanho das garatujas que o cobriam.
Sonhei que vagava por longas horas pela cidade e, onde quer que eu fosse, havia apenas mendigos se banhando alegres em sua ignorância. Por vezes estes me falavam alguma coisa que eu nunca consegui ouvir. Mesmo vagando por horas sem chegar a lugar algum, visitei três lugares. O primeiro era familiar, um vasto apartamento cheio de plantas onde uma criança me pedia para ensiná-la a pintar. Me levou pela mão a um cavalete com uma tela, pinceis e tinta, mas sempre que o meu pincel tocava o pote de tinta, toda a tinta se tornava carne moída que apodrecia num caldo marrom espesso e liquefazia a cada pincelada. A tela pingava, a mistura escorria para fora e nada ficava. A mãe, que se mostrava indiferente ao que eu fazia, foi crescendo em aversão e impaciência a minha presença, ao que decidi sair de lá. Lembrei que precisava retornar uma fita de videogame à locadora, estava comigo há dias e nunca havia encaixado ao aparelho. A dona da locadora se propôs a examinar o mesmo e retornar-me as diárias. Partimos em uma caminhada que levou dias, o aparelho se encontrava na casa de alguém de quem eu não gostava, mas que permitiu nossa entrada. Atravessamos então a sala da casa, mas o corredor que levava ao quarto era agora um túnel de metrô. Nunca chegamos ao quarto. Abandonei o lugar, fui para o estúdio onde trabalho. A rua estava toda molhada da tempestade que havia caído e o sol saía por entre as nuvens pintando o asfalto e as calçadas em tons de dourado resplandescentes. O imóvel cinza jazia lá no mesmo lugar, vazio, sem nada nem ninguém. Foi então que decidi ir ao único lugar que eu queria ir desde o princípio, ver a única pessoa com quem eu desejava estar. Acordei com a boca seca e o sol quente invadindo a janela, ardendo em meu rosto.