Essa noite eu tive um
sonho. Sonhei que tentava escrever e a tinta de todas as canetas
falhava. As letras, despedaçadas, irreconhecíveis, se atiravam pelo
papel cobrindo toda sua superfície diminuída pelo tamanho das
garatujas que o cobriam.
Sonhei que vagava por longas horas pela
cidade e, onde quer que eu fosse, havia apenas mendigos se banhando
alegres em sua ignorância. Por vezes estes me falavam alguma coisa
que eu nunca consegui ouvir. Mesmo vagando por horas sem chegar a
lugar algum, visitei três lugares. O primeiro era familiar, um vasto
apartamento cheio de plantas onde uma criança me pedia para
ensiná-la a pintar. Me levou pela mão a um cavalete com uma tela,
pinceis e tinta, mas sempre que o meu pincel tocava o pote de tinta,
toda a tinta se tornava carne moída que apodrecia num caldo marrom
espesso e liquefazia a cada pincelada. A tela pingava, a mistura escorria para fora e nada ficava. A
mãe, que se mostrava indiferente ao que eu fazia, foi
crescendo em aversão e impaciência a minha presença, ao que decidi sair de lá.
Lembrei que precisava retornar uma fita de videogame à locadora,
estava comigo há dias e nunca havia encaixado ao aparelho. A dona da
locadora se propôs a examinar o mesmo e retornar-me as diárias.
Partimos em uma caminhada que levou dias, o aparelho se encontrava na
casa de alguém de quem eu não gostava, mas que permitiu nossa entrada.
Atravessamos então a sala da casa, mas o corredor que levava ao
quarto era agora um túnel de metrô. Nunca chegamos ao quarto. Abandonei o lugar, fui para o estúdio onde trabalho. A rua estava toda molhada da
tempestade que havia caído e o sol saía por entre as nuvens
pintando o asfalto e as calçadas em tons de dourado resplandescentes.
O imóvel cinza jazia lá no mesmo lugar, vazio, sem nada nem
ninguém. Foi então que decidi ir ao único lugar que eu queria ir
desde o princípio, ver a única pessoa com quem eu desejava estar.
Acordei com a boca seca e o sol quente invadindo a janela, ardendo em meu rosto.