segunda-feira, janeiro 03, 2005

Conto de Natal

18:20, eu havia saído da casa dela, um pouco constrangido e um pouco consternado. Não é todo dia que você entrega um presente de aniversário, ainda que atrasado, e fica com a impressão de que a pessoa olhava através de você. Sei lá, ela deveria ter seus motivos, os quais não cabem a este ensaio. O fato é que faltavam quase seis horas para a ceia de natal e eu não estava nem um pouco a fim de voltar para casa. A idéia que vinha crescendo há algumas horas na minha mente agora tomava forma. Um bate-e-volta em Santos. Praticidades de quem tem uma moto, não paga pedágio e gasta uns R$12,00 em combustível para ir e voltar. Lá fui eu seguindo estrada adentro com o sol já baixo. Com sorte, ainda conseguiria assistir ao sol se pondo no mar.Sempre venta muito na descida da serra, mas, no dia, até que estava tranqüilo. Poucos veículos, nenhum caminhão, apenas eu, Valentyne e o asfalto, ocasionalmente acompanhados por meia-dúzia de carros. No começo da “Nova Imigrantes” o sol resolveu esconder-se atrás das nuvens e uma neblina espessa tomou conta da estrada. Neblina de verdade e muita, eu enxergava apenas as luzes de freio do carro à frente perdidas no meio do branco e o chão imediatamente abaixo da roda dianteira até 3 ou 4 metros à frente. Alguns pensamentos bizarros surgiram “literalmente” do nada: “é só seguir em direção às luzes, as duas vermelhas quadradinhas, não a branca gigantesca à direita no final do túnel”. A neblina causa uma sensação estranha, como se Deus passasse uma borracha no mundo, mas essa impressão durou pouco, pois logo eu entrei no túnel (o da estrada, não o da luz) ignorando a existência de neblina ou vento e rapidamente alcançando a Baixada Santista. Uma vez em Santos, demorei apenas para alcançar a praia, chegando lá no exato momento em que o sol entrega-se para morrer nos braços do mar, numa diversidade de tons que apenas o oceano é capaz de pintar de encontro ao firmamento. Minha empreitada não poderia ter sido melhor, voar pela estrada livre para caçar um pôr do sol. Regozijado pelo momento único, aproveitei para visitar alguns parentes, o que fez com que partisse de lá apenas 23:20. Apesar da hospitalidade, não resisti, voltei àquela hora mesmo, pois havia combinado de encontrar com meus poucos amigos próximos após a ceia e abrir um bom Cabernet Sauvignon. Mas nem imaginava que o meu intento seria frustrado e que não encontraria ninguém quando chegasse em São Paulo. Enfim, foi então, durante a volta, que aconteceu o extraordinário. A estrada estava deserta, como era de se esperar, estendendo seu veludo negro sob meus pés, um silêncio tranqüilo e um céu estrelado. Eu deslizava noite adentro praticamente só e meus pensamentos pareciam falar em voz muito alta. No final da planície litorânea a única estrada disponível para a volta era a Anchieta, eu nunca havia subido a serra por ela que é mais tortuosa e utilizada para transporte de cargas, mas a estrada estava tranqüila e não havia outra opção. Eu já disse que a estrada estava tranqüila? Pois é, estava tranqüila... tranqüila até demais e foi em meio a toda essa tranqüilidade que avistei meia dúzia de carros subindo juntos atrás de uma viatura com as luzes apagadas, provavelmente um carro da polícia ou da empresa concessionária da estrada, estavam a uma velocidade razoável e pareciam conhecer bem a estrada. Decidi me embrenhar junto a eles e fui subindo com calma, em segurança na estrada vazia com uma certa paz de espírito. Foi bem melhor do que enfrentar aquele breu absoluto, já que as lanternas dos carros aumentavam a luminosidade da estrada e espantavam aquela escuridão quase sobrenatural. Chegando na divisa de município com São Bernardo, no ponto onde a Anchieta retorna a Imigrantes depois da serra, todos os carros haviam me ultrapassado e enfileirado a minha direita, sendo que o último da fila começou a sinalizar com a seta e com o braço para que eu ultrapassasse. Achando tudo muito estranho vim para a pista da esquerda e acelerei ultrapassando a fila toda, inclusive a viatura... do serviço funerário municipal.

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