A cova aguarda.
Com rosnados e roncos ensurdecedores a rua trata os passantes rispidamente.
A cova aguarda.
Força um transe hipnótico em que ninguém vê ninguém, só ouve aos barulhos e respira o cheiro fétido da cidade, de suas velhas galerias, hidrocarbonetos e esgoto à vista de estabelecimentos pútridos.
A cova aguarda.
Em algum lugar do outro lado da cidade ela aguarda, sinistra, silenciosa, funesta. E eu aqui, em um lapso de consciência oriundo das mais misteriosas manifestações da vida, batatas e leveduras. Minhas batatas, minhas leveduras, outras vidas e a minha não-vida. Enquanto a minha vida... A cova aguarda pronta para me devorar a cada dia mais. Mas mal sabe ela que já me tem por inteiro! Que estou morto sabe lá desde quando e que se ainda existo é porque apenas ando e moribundo, mórbido, maltrapilho, habito a casca vazia de mim mesmo.
Ocasionalmente acordo e enxergo através de meus próprios olhos em um instante único de lucidez quando à noite a Lua envolve as minhas entranhas com carícias. Ou quando às vezes sinto um pálido raio de sol invernal o qual ao passar me retorna ao cadafalso, como agora que o lusco-fusco foi-se, o frio é implacável, as batatas jazem gélidas no prato e a consciência luta contra a imobilidade.
O copo rapidamente seca enquanto rabisco as últimas linhas entre goles. O corpo reluta.
A cova aguarda seu momento triunfal.
E eu espero pelo último frio do inverno.
Little, Big
Há 2 meses