terça-feira, setembro 23, 2008

Cadafalso

A cova aguarda.

Com rosnados e roncos ensurdecedores a rua trata os passantes rispidamente.

A cova aguarda.

Força um transe hipnótico em que ninguém vê ninguém, só ouve aos barulhos e respira o cheiro fétido da cidade, de suas velhas galerias, hidrocarbonetos e esgoto à vista de estabelecimentos pútridos.

A cova aguarda.

Em algum lugar do outro lado da cidade ela aguarda, sinistra, silenciosa, funesta. E eu aqui, em um lapso de consciência oriundo das mais misteriosas manifestações da vida, batatas e leveduras. Minhas batatas, minhas leveduras, outras vidas e a minha não-vida. Enquanto a minha vida... A cova aguarda pronta para me devorar a cada dia mais. Mas mal sabe ela que já me tem por inteiro! Que estou morto sabe lá desde quando e que se ainda existo é porque apenas ando e moribundo, mórbido, maltrapilho, habito a casca vazia de mim mesmo.

Ocasionalmente acordo e enxergo através de meus próprios olhos em um instante único de lucidez quando à noite a Lua envolve as minhas entranhas com carícias. Ou quando às vezes sinto um pálido raio de sol invernal o qual ao passar me retorna ao cadafalso, como agora que o lusco-fusco foi-se, o frio é implacável, as batatas jazem gélidas no prato e a consciência luta contra a imobilidade.

O copo rapidamente seca enquanto rabisco as últimas linhas entre goles. O corpo reluta.

A cova aguarda seu momento triunfal.

E eu espero pelo último frio do inverno.

2 comentários:

  1. bom o seu texto! Não sabia que você se sentia tão próximo da cova ultimamente. Isso muda muita coisa.

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  2. Mais do que aguardar... a cova nos persegue, ou quem sabe nós a persigamos sem nos dar conta disso. O que se faz relevante contudo são aqueles com quem percorremos boa parte do trajeto até ela, ou ante ela...
    Meu amigo querido, quanta saudade!!! Que visita mais agradável nesta humilde casa, cujo quintal apesar das pontas afiadas, mantém a transparência mesma dos tempos passados.

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