sexta-feira, junho 25, 2010

Scientia Vinces

A pequena criatura dourado-avermelhada deslizava misteriosamente com o peso de seus anos em seu cubo azul entremeado de folhas verdes, nas quais roçava costumeiramente atraído pela leve sensação táctil.

-Pai, o que você faz no trabalho?

O jovem senhor, cujos cabelos só agora começavam timidamente a branquear, fitou longamente seu rebento tentando encontrar algum sinal nele de que o momento era apropriado. Perdeu-se por um instante em seus pensamentos e, como o homem de ciência orgulhoso que era, decidiu que nunca é cedo o bastante para alguém ser iniciado nas maravilhas da ciência. O garoto, que a essa altura já havia desistido de obter qualquer resposta, surpreendeu-se quando a voz rouca de seu pai cortou o ar novamente abrindo espaço entre o menino e seu brinquedo.

-O papai é um médico tanatologista. Você sabe o que é isso?

-Médico tatanologitas? - Disse o menino divertidamente.

-Tanatologista. - Repetiu o pai forçando as letras de volta a seus respectivos lugares.

-Não... - hesitou o garoto de cabeça baixa desviando o olhar calculada e imperceptivelmente para a estante de livros logo atrás do pai. - Médico não é aquele homem que cuida das pessoas?

-Sim. E o médico tanatologista cuida das pessoas depois que elas morrem.

-O que é morrer? - Indagou a criança quase sem respirar.

-Você não sabe o que é morrer? - Inspirou lentamente - A morte é quando uma pessoa deixa de existir. Fisicamente! - completou rapidamente e inspirou mais uma vez - Como aconteceu com a sua mãe.

-Mas por que as pessoas mortas precisam de médico? - Continuou curioso.

O homem sentia-se emaranhar nas crescentes dúvidas do filho. Queria explicar tudo com tanta ciência quanto aprendera, porém, a resposta verdadeira era tão complicada que às vezes ele mesmo não sabia estar certa. Prevendo a espiral de perguntas que se seguiriam e sua crescente impaciência diante das limitações de seu questionador, atalhou relutante:

-Para reconstruir os fatos e descobrir como eles morreram, assim os mortos poderão descansar em paz e os vivos aprenderão a evitar a morte. - Disse o homem satisfeito consigo mesmo pela articulação verossímil enquanto os olhos de seu filho brilhavam com orgulho do pai.

"Reconstruir os fatos" - Repetiu mentalmente o garoto fascinado pelo significado que desconhecia.

"Reconstruir os fatos" - Ele desconhecia o que isso significava, mas seu pai não, era um homem muito inteligente que sabia de tudo.

Brincou maravilhado até que a noite chegou, sua babá veio e sue pai se foi. às horas passaram rapidamente e logo era hora de dormir. Deitou na cama de olhos fechados e esperou pouco como de costume, levantou-se, caminhou até a porta, escutou e abriu. Atravessou o corredor e a sala observando com curiosidade e afeto a babá que em sua exaustão havia cedido mais uma vez ao sono.

"Parece tão cansada!" - pensou.

Caminhou até o aquário, observou o velho peixe que tanto amava e falou em bom tom:

-Eu vou aprender tudo e você nunca vai deixar de existir fisicamente! Boa noite peixe!. Deixou-se ali por um instante e depois voltou para o seu quarto. Deitou-se na cama e pensou longamente até cair no sono:

"Reconstruir os fatos."

"Reconstruir os fatos." - Repetiu mentalmente o garoto fascinado pela força das palavras.

"Reconstruir os fatos..." - Agora ele começava a compreender o significava. Queria aprender tudo como o seu pai. E um dia quando soubesse ler, leria todos os livros do pai e aprenderia tudo o que ainda não sabia sobre "reconstruir os fatos". Todos aqueles livros com figuras grandes de homens tortos e engraçados que folheava à noite enquanto a babá dormia e o pai trabalhava. Todos os livros da estante ao lado do grande cubo azul que agora tingia-se de vermelho com a reconstrução de seu primeiro fato. E reconstruiria a todos os fatos para que todos descansassem em paz e para que ninguém mais deixasse de existir fisicamente.