terça-feira, dezembro 21, 2004

Meninos não choram.

Meninos não choram. Não sei bem porque, mas meninos não choram. Não cai bem. Coisa de frouxo diriam uns e outros, coisa de mulher... meninos não choram. Não importa, mesmo que estejam sozinhos, meninos não choram. Mesmo que se sintam magoados, meninos não choram. Mesmo quando desenganados, meninos não choram.
Não há motivo que justifique o choro. Devem ser duros, ásperos, não devem ter lágrimas. Lágrimas molham, amolecem. Lágrimas são piegas, tem sentimentos demais. Meninos não devem sentir nem amolecer, meninos devem ser duros como pedra. E pedras? Pedras não choram. Pedras são brutas, sedutoras, eternas, pontiagudas, mas pedras... não choram. Que confiança há em quem chora? Quem chora precisa ser acalentado, protegido, quem chora precisa de colo. Meninos não, meninos devem ser bravos e varonis o tempo todo, ou então, simplesmente não são. E não ser... é pior que não chorar.
Mesmo que percam um amigo dito valoroso, meninos não choram, a eles não é permitido este tipo de amizade, devem sim ser camaradas, mas a intimidade carrega sempre uma mácula, retira sempre um pouco do brio. A amizade é sempre maldita como a de Arthur e Galahard. Mesmo que percam alguém de quem gostem muito, meninos não choram, pois não são eles quem perdem, meninos sim são perdidos. Mesmo que se percam pela vida, meninos não choram, meninos não se perdem, figuram à proa do navio apontando o caminho tal qual o astrolábio.
Meninos devem ser algozes, alentejos, carnífices, severos. Meninos devem estar prontos para o sacrifício, mesmo que seja por alguém que não queira, mesmo que seja por alguém que não mereça, e não devem de maneira alguma demonstrar seu interior ou velam como o filme fotográfico, tornam-se inúteis, perdem o valor.
Meninos não choram, mesmo que percam seu maior companheiro de muitos e muitos anos, seu fiel amigo de 18 anos, em uma manhã fria e chuvosa no primeiro dia de um verão. Aquele que sempre lhe saudara e sempre lhe acolhera sem nunca se importar se meninos devem ou não chorar. Ah amigo, como lhe dizer adeus depois de tantos e tantos anos? Tantas corridas e tantas caminhadas? Tantos afagos e tantos carinhos? Pago lhe hoje meu último favor, não um favor, pois é antes meu dever. Pago-lhe hoje as moedas para o Caronte e desejo um dia lhe reencontrar junto aos Deuses. Boa viagem em sua derradeira caminhada.
Adeus amigo, adeus.

Semi-existência

Escrito ontem pela manhã.

Batidas descompassadas, coração acelerado, falta fôlego, água, frio, incômodo. Estou na cama. Viro de um lado para outro, quase me debato, não encontro posição confortável. Ora um calor insuportável, ora um frio desagradável e ninguém a meu lado. Meu corpo dói. Meu cérebro pulsa, resiste a acordar, não quer voltar a dormir. Permaneço prostrado, cansado, vazio, desalentado e com um sono insuportável. Levanto de súbito, me visto tão rápido que não entendo como. Silêncio. Todos foram embora. Que estou fazendo eu sozinho? Não me lembro do meu nome, olho no espelho e não me reconheço. Na mesa permanece o desjejum, frio já há algum tempo. Bebo leite. Olho em volta, uma brisa gelada constante arrepia a pele. Saio à rua e os olhos passam por mim sem me notar, olhos vazios, esbranquiçados, olhos de mortos. Vez que outra um olhar parece me acompanhar, parece me reconhecer, depois desiste, ignora-me. Não sei, parece que sou outro, torto, não valho a pena, e meus olhos talvez sejam de um morto, ou estejam se tornando. Desisto, vou trabalhar. O sono me devora, não consigo acompanhar as letras no monitor, para onde elas foram? Fugiram, correram pela sala. Fico perseguindo as letras, os olhos, o sono. Numa sala vazia, sempre vazia, onde os anos passam e eu envelheço mais e mais sozinho. Mas nunca morro. Talvez já esteja morto a algum tempo e por isso não viva. Aparentemente voltei a acordar, olho ao redor desconfiado, um mosquito disputa a minha atenção com o monitor. Parece que ele consegue me ver, desvia dos meus movimentos. Fico imaginando se o mesmo acontece com as pessoas, se não vou passar através delas e sentir muito frio. É impossível explicar, é ilógico, é tortuoso. Começo a falar e percebo que converso sozinho, do outro lado do tabuleiro de xadrez não há ninguém. Chá para dois, três, seis, mas uma xícara só se esvazia em quanto as outras esfriam. Meu coração dói e eu não consigo saber por que, não há o que eu faça, não há o que eu fale nem o que escreva nem o que grite. Os dias vão perdendo as cores e as rosas secam no armário.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Entre a sobrancelha e o olho

Deitado na varanda à sombra dos arbustos repousava em uma rede um homem admoestado pelo sono insistente. O tempo quente das tardes de verão deixava tudo vagaroso. A brisa às vezes acariciava o corpo, refrescava e balançava a rede. O cheiro de frutas invadia a casa vindo do pomar, os gatos dormiam sob o sol, tudo compunha um quadro. Do seu lado esquerdo, em uma pequena mesa redonda, branca, repousava um copo de limonada com gelo e um livro, “A queda que as mulheres têm para os tolos”, uma excelente tradução de um autor francês desconhecido feita pelo senhor Machado de Assis. Uma cigarra chiava ao longe fazendo lembrar o cheiro de mato dos dias de infância e o riso dos primos. O sol escapava por minúsculos espaços entre as folhas das árvores para furar a sombra, lamber-lhe o colo e iluminar a pequena pinta que residia só entre a sobrancelha e o olho. Espreguiçou-se e virou de lado expondo o torso nu, o sono vinha gostoso e os sonhos, doces como néctar, regados num desejo de ouvir Djavan. Ah... vontade de poesia que rola no corpo, na sensação de toque leve na pele e no cheiro de calêndula. Dentes de Leão voando pelo ar, escalando o céu claro até as nuvens brancas que dançam no cerúleo refletidas na íris e na pupila dilatada, pegadia, perdida.

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Não Leia.

Às vezes quando estou só algumas idéias vem me visitar em asas de mariposas e se queimam na lâmpada inúmeras vezes até caírem mortas no chão. Outras vivem escavando o solo e devorando a terra fazendo cócegas na minha mente. Algumas vêm e outras vão depois de um tempo. Às vezes estas idéias ficam, esperando maturação, às vezes elas morrem sem terem conhecido a luz do dia. Outras surgem devorando a estas idéias como surgem os vermes que devoram cadáveres. Hoje apenas não há como falar. É falar sobre o nada, tentar relacionar ecos, ametistas, vinagre e vestidos vermelhos, como relacionar olhares, madeira e desespero. É imiscuir água em óleo, derreter areia com gelo. Às vezes não há como falar. Aqui sou senhor do absoluto, monarca supremo do meu reino. Aqui minha palavra é a ordem e estabelece a história, mas hoje, hoje não há histórias para serem contadas. No princípio era o verbo, e depois, o silêncio. Como poderia deixar-me seduzir pelo silêncio e fazê-lo abater-se sobre todas as coisas? Delírios apoteóticos de uma mente lúgubre, insana e insalubre. O dia de hoje simplesmente não aconteceu. E no sétimo dia? Ele não descansou? Não. Estava farto por demais, enrolou, chorou, padeceu, riu e visitou a loucura.
Blasfêmia, eu disse: "Não leia." e a propósito, não quer ler, não venha.