quinta-feira, novembro 04, 2004

O dia dos mortos

Ao se levantar, logo pela manhã, seus olhos teimavam em ficar fechados. O corpo jazia semi-inerte enrolado nos lençóis e virava-se vez ou outra procurando um pouco de calor e uma posição confortável. Mas sua consciência não tardou a falar mais alto e mesmo amarrado as necessidades fisiológicas que seu corpo exigia de forma pungente e turbulenta, levantou-se cambaleante e arrastou-se pelo quarto tateando em busca de uma calça. Ontem havia sido o dia de Finados, o dia onde se cultuam os mortos, e ele havia permanecido confinado a sua casa como um defunto em sua cripta. Não foi a falta de opção, nem a falta de vontade, pelo menos não a princípio. Quando pequeno, seus pais costumavam levá-lo até o tumulo dos avós, em uma outra cidade. Avós que não conheceu, mas os visitava habitualmente, se é que os mortos realmente se importam com visitas; certo dia isso lhe fez pensar: _Coisa curiosa. A morte. Vindo de uma família grande e nascido uma geração mais tarde, conheceu vários de seus anciões e teve a oportunidade de voltar à mansão dos mortos diversas vezes. Hoje, lembrava-se daqueles tempos, da necrópole escaldante, do cheiro de crisântemos, das beatas nas vielas e das pontuais chuvas torrenciais no fim de tarde. Sempre chovia. Sempre. Por vezes os velhos lhe contavam histórias e velhas superstições. Neste mesmo instante lembrava-se de uma: diziam que ao olhar para o cemitério a meia noite do dia de finados, você seria capaz de ver a procissão dos mortos saindo de suas covas em direção às casas para visitar os vivos. Pensou pelo dia à fora, sem encontrar a resposta a equação que se impunha lasciva a sua mente. Quem estava de fato morto? Seus avós, que hoje não passavam de um punhado de pó, cabelos e ossos ou ele, que lutava contra os próprios impulsos e necessidades da vida para enfrentar um novo dia de trabalho? De olhos vidrados em frente ao monitor o sono tentava usurpar sua atenção, este há dias o desafiava, mas também negava a ele o descanso. Com o descaso a fome lhe tratava e mesmo as iguarias que mais apreciava não pareciam provocar-lhe o estímulo necessário. Gastou com alguma besteira que comera apenas pelo impulso. Se quer possuía fome. A volúpia parecia jogar o mesmo jogo, mostrando-se em horas impróprias para desvanecer nos momentos onde seria ela oportuna. Durante todo o tempo em que permanecia acordado tinha impressão de ter suas vontades trocadas, queria dormir quando precisava ficar acordado, trabalhar quando devia dormir, rir e conversar quando deveria fazer sexo... Desenhar, ler, estudar, brincar, beijar, deitar na grama, nadar na praia, tudo se misturava em um sincretismo maldito, ameaçador, brincalhão. Espíritos Zombeteiros... Parecia-lhe agora que havia passado para outro lado da vida, parecia agora pertencer ao Senhor dos Esquecimentos. Este vinha se aproximando vagarosamente em uma marcha inexorável. Primeiro se apropriara de suas memórias, depois de seus gostos e agora parecia cobrar sua vida, sentado sobre o computador, estalando os dedos e balançando os pés sobre o monitor, o que produzia um estalido baixo e cadenciado do contato entre o coturno que vestia e o vidro do monitor. Talvez seja isso, talvez seja uma forma de ignorar quem está vivo e quem está morto. Talvez um modo de cultuar a nós mesmos. Jogo perigoso esse, quando pequenos seres se aproximam cobrando coisas grandiosas.

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