quinta-feira, outubro 28, 2004

Como outro dia qualquer

“Hoje acho que estou a fim de pegar um cinema sozinho, como nos bons tempos”. Foi assim que começou. Olhou os bolsos onde jaziam duas moedas de dez centavos, a carteira onde um surrado trevo de quatro folhas dividia, plastificado, o pequeno espaço com cinqüenta Iene e mais vinte centavos de Real e terminou com uma breve visita ao site do banco, onde números vermelhos exterminavam sonhos. Respirou fundo, olhou o trabalho empilhado sobre a mesa junto ao computador e uma xícara fria de chá. Ainda dá para tomar, pensou num surto de polianisses. Fez algumas contas. Hoje é quinta, amanhã recebo e começo bem o final de semana, cobrindo o limite da minha conta corrente até segunda feira quando, então, faltará apenas quinze dias para que o ritual se repita. Sentiu-se ridículo, riu de si, reclinou a cadeira e continuou digitando. Um breve olhar ao redor revelava pessoas ocupadas, preocupadas e desesperadas pelo excesso de trabalho. Na mesa em frente, um administrador mauricinho abria uma embalagem de plástico e se debruçava, voraz, sobre o pedaço de bolo de chocolate. No disc-man um led indicava a bateria chegando ao seu fim enquanto Lenny Kravitz tocava apenas para ele.
Procurou rapidamente algo em seu e-mail e encontrou apenas algumas propagandas, dois vírus e algum vazio. Pensou: “Existirá vida inteligente lá fora?”. Era quase hora do almoço, hora em que, diariamente, ele fugia desesperado do refeitório da empresa em busca de alguma comida real e alguma discussão estimulante. Infelizmente as garotas mais inteligentes do escritório por vezes insistiam em retornar a assuntos rotineiros e por demais cotidianos. Casamentos, crianças, o maldito trabalho de conclusão de curso. Assuntos que se repetiam religiosamente da mesma forma, com os mesmos comentários e tópicos em uma ordem inabalável. Memens. Ao menos elas não falam sobre novela... Os rapazes, bom, meu salário não ajuda muito a convivência. O almoço passou por ele como previsto, não conseguiu empurrar o lixo que alguém insistia em chamar de comida, feijão sem gosto, farofa mole e pedaços crus de frango e lingüiça. Comeu apenas alguns pedaços de beterraba, algo que nunca lhe agradara, e tomates extremamente vermelhos. Lembrou-se do exército e em seguida tentou retirar uns cheques no caixa do banco para comprar qualquer coisa que lhe enganasse o estômago. Quando retornou a sua mesa a voz do administrador em frente o irritava penetrando levianamente em sua mente, este, passara toda a última hora no telefone, entretido em uma conversa fútil onde se gabava por enganar com sucesso a própria namorada. Ligou novamente o disc-man numa tentativa frustrada de ignorar o administrador e exterminou grande parte do trabalho enquanto isso. Pôs-se então a examinar as resenhas dos clientes. Continuou curioso sobre a existência de vida inteligente.

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